quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Perdida



Acordou. Abriu a janela prestando atenção aos sinais do tempo.Tomou um longo banho bem quente. Colocou uma blusa, calça jeans, um tênis, perfumou-se. Antes de sair, conferiu a bolsa. Trancou a casa.

A chave foi encontrada na lixeira. Os documentos também. Ninguém sabe o que houve.
Não levou nada da confortável vida que tinha. Não disse adeus a ninguém! Desapareceu sob a neblina. Densa, misteriosa....

domingo, 26 de dezembro de 2010

Continho



Ruiva, sardenta, magra.
_ Foguinho!
_ Espiga de milho!
_ Labareda!
Moleque, pés descalços, bermuda, banho de rio.
_ Nem parece uma menina!
_ Olha só que modos!
_  Nunca a vi de vestido!
_ Cruzes!
Briguenta, desaforada, petulante.
_ Não tem educação!
_ Veja bem como fala com os mais velhos!
_ Boca suja!
_ Essa não tem jeito.
_ Não quero você falando com ela!
_ Vai acabar sozinha!
_ Duvido que arranje marido!
Descoberta, desvendada, revelada...
_ Moranguinho...
_ Hum!?
_Você parece um moranguinho com todas essas pintinhas.
_ Pareço?
_ Sim. Seus cabelos...
_ O que tem meus cabelos?
_ Você os roubou do Sol para ofuscar meus olhos?
_ ...
_ Você é linda, sabia?
_  !!!!
_  Hei! Volte aqui!
Menina, moça, feminina, mulher.
_  Não acredito!
_  O filho do Prefeito?
_  Dizem que está completamente apaixonado por ela.
_  Por aquele bichinho chucro!!??
_  Oi.
_  Oi.
_  Você está perfumada.
_  Estou.
_  Está linda de vestido!
_  Obrigada!
_  O que você quer fazer? Vamos ao cinema? Ao parque? À lanchonete?
_  Não sei...
_ Você escolhe.
_ Vamos tomar banho de rio?
_ Vamos, meu moranguinho!

sábado, 18 de dezembro de 2010

Sinais





-Assim? De repente?
-Claro que não!Você não percebeu os sinais?
-Que sinais?
- Ora, todos!
- Não, não percebi.
- É eu sei. Devia saber que você não  perceberia mesmo. Nunca percebe nada! Vive nesse mundinho, sempre fazendo as mesmas coisas, preocupada em economizar, em manter armários arrumados, em conferir as notas dos meninos, em ver se a minha roupa está bem passada. Em fazer chazinho a cada dor de barriga dentro desta casa, que não notou as mudanças.
- Pensei que estava fazendo o que era certo...
Na varanda, nunca a paixão fora tão clara!
- Pensei que você se sentisse bem... que eu lhe fazia bem...
- Bem demais! Nunca vi tanta paz! Estou cansado.
- Eu posso mudar.
- Não, não pode. Você é assim. Impossível você mudar! É isso! chegamos ao fim! Nosso casamento é um tédio.
Acordou assustada, suando. Sentiu uma enorme sensação de alívio ao perceber que sonhara. Olhou para o lado, viu o marido dormindo serenamente. O medo se instalou em seu coração. “E se tudo aquilo fosse um aviso? Um sinal?” Estremeceu só de pensar. Levantou-se. Desde quando era mulher de premonições? De crendices? Teve um dia cheio, por isso o pesadelo. Aquele doce que a sogra mandou também deve ter feito mal. “Nem estava bom.”
 Tornou a olhar para o marido, desta vez, desconfiada., inquieta.
 Tomou um banho, vestiu a lingerie nova, pôs o vestido mais bonito, meias finas, salto alto. Saiu do quarto batendo levemente a porta.
O marido foi encontrá-la sentada na varanda, pernas cruzadas, insinuante... Surpreendeu-se.  Não entendeu nada! Fechou a porta com cuidado para não acordar as crianças.
Sobre a pequena mesa, uma garrafa de vinho, duas taças. Achou melhor manter o silêncio. Serviu o vinho e dançaram juntos uma música que só eles ouviam.
A desconfiança agora habitava os pensamentos dele!
Um primeiro beijo e as taças foram esquecidas. Sorriram, cúmplices da mesma aventura, partes do mesmo desejo. Um segundo beijo e as mãos se entrelaçaram ávidas. Um terceiro e corpo e alma se tornaram um
No céu, as nuvens tornavam a madrugada mais escura.
- Você é muito previsível! Eu chego em casa e sei que você vai estar esperando, de banho tomado, perfumada, com o jantar pronto e os meninos já tendo feito a lição de casa. Nada muda!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Mistério



Duas luas!
Não se preocupou, devia estar sonhando.
Tornou a olhar meio cismado. As danadas continuavam lá reluzindo!
Esfregou os olhos, sacudiu a cabeça para ver se acordava, beliscou-se...
Nada! Havia mesmo duas luas no céu.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O tule preto



Ela se trancou no quarto, triste que estava. Fechou atrás de si a porta.
Aos poucos criou para si um mundo à parte. Mas o sol teimava em entrar pelas frestas da janela todas as manhãs.

Fechou as janelas. Teceu com esmero um vestido longo e preto, de modo que seu corpo não mais se mostrasse.

Lá fora, o tempo encarregava-se de transformar a vida. O vento sempre trazia mudanças. Dentro, tons sobre tons cuidadosamente escolhidos: todos escuros.  Rosas de organza grená passaram a enfeitar o jarro. Cortinas marrons cobriram o que restava de luz nas janelas. Em cada nova peça dedicava-se por completo.

No início, o tempo bateu na porta trazendo os ventos de outono convidando-a a olhar para as belas folhas douradas sobre o chão. Nada! Voltou trazendo delicados raios de sol para aquecer os dias frios. Em vão! Paciente, trouxe-lhe flores, folhas, frutos, exuberância! Não adiantou. Em sua última tentativa, chegou com o calor dos afagos, com temporais de alegria, com trovões e raios anunciando festa. Então ela quis sair. Mas quando tirou dos olhos o tule preto, nada enxergou. Mesmo assim tentou. Seus pés, no entanto, não conheciam o caminho para a porta e esta, tanto tempo fechada, tinha virado parede...

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O choro



Ela permitiu pela primeira vez que o vento desalinhasse seus cabelos e gostou!
Animada, deixou a fria água do mar tocar seus pés. Adorou aquela nova e perturbadora sensação. Também não se importou que o sol lhe tocasse a pele bronzeando-a...

Arrumou-se, voltou ao cemitério. Chorou profundamente diante do caixão.
Estava livre, então!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A resposta



- A vida pode ser melhor que o sonho?

A pergunta soou estranha. Estavam na cozinha envolvidas com os preparativos de um almoço em família. Uma picando temperos, a outra no fogão fazendo uma farofa maravilhosa.

Os aromas na cozinha despertavam sensações perdidas na lembrança: festas de aniversário, crianças correndo, festas de natal com todo mundo reunido. Ano novo! Quando ela terminava as rabanadas pouco antes da meia-noite, apavorada com medo de passar o ano na cozinha.

Na panela, tempero verde, cebola, alho, manteiga, cenoura e por fim a farinha. No forno o cheiro do assado. Do espesso molho, que a todo o momento é generosamente espalhado sobre a carne.

As crianças correm pelo quintal. De vez em quando uma entra e rouba alguma coisa na cozinha. Molecagem pura! Na sala, o marido e o genro assistem à tv e conversam animadamente. Serve-lhes uns petiscos para acompanhar a cervejinha.

A ampla sala, sempre bem arrumada, tem um gostoso desalinho do tempo dos filhos pequenos. O barulho do portão anuncia a chegada do filho, dos outros netos e da nora. Família completa! O filho logo se reúne na sala. Mais cerveja! A nora vem trazendo os ingredientes para a sobremesa. A única coisa que faz na cozinha. Estão animadas.

Gemas, açúcar, coco ralado, manteiga. No fogo uma calda fervente em ponto de fio. As forminhas espalhadas sobre a mesa são untadas e polvilhadas com açúcar. Entram no forno em banho-maria.

Olha para a filha arrumando os pratos com esmero. Fazendo uma delicada flor com a beterraba que vai sobre a maionese, enfeitando o assado com farofa e coloridas tiras de pimentão, salpicando cheiro-verde sobre o arroz. Até a nora faz seus quindins com visível prazer.

A campainha toca. Estranhamente, os homens não a atendem. Chamam por ela. No portão um rapaz está escondido atrás de um belíssimo vaso de orquídea. Adora orquídeas! Emociona-se. Presente do marido. Todos a observam da varanda.

Reúnem-se em torno da mesa cuidadosamente arrumada. Falam alto, disputam a comida, riem, deixam cair migalhas sobre a mesa e no chão. Mais uma vez, ela tudo observa.

Depois do almoço, as crianças tiram a mesa e arrumam a sala. Os maridos lavam a louça.

Juntas, na varanda, as mulheres são cúmplices de um mudo acordo. Cada uma, ao seu jeito, mantém unida a família. Entreolham-se ao ouvir o barulho que vem da casa. Sorriem.

-A vida pode sim ser melhor! Cada vez melhor que o sonho!
Esticam-se confortavelmente nas cadeiras de vime, todas com os pés sobre a mesa.
É a hora delas tomarem cervejinhas e fazerem fofoca.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Encanto


O cheiro que vinha da cozinha era especial. Só ela fazia aquele prato cheirar tão bem.

O bate papo na sala de visitas mudava. Girava em torno dela, da sua habilidade em encantar a todos, de receber todos com carinho e principalmente de cozinhar tão maravilhosamente.

Era possível ouvir os ruídos denunciando a fome de cada um, mas ninguém se atrevia a ir até a cozinha. Era território proibido. O jeito era esperar.

Secretamente, ela se deliciava: mesmo que não estivesse por perto, era o centro das atenções.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Recomeço

Depois de um longo descanso, recomeçou a caminhada... Ainda que não soubesse ao certo aonde ir.

sábado, 27 de novembro de 2010

A decisão



O telefone tocou uma, duas... várias vezes.
Depois foi a vez da campainha, da buzina, do entregador de flores.
A caixa de e-mails superlotou.
Todos sem resposta.
Fechou portas e janelas. Tornou o dia em noite.
Trancada em casa, chora. Relembra e torna a chorar.
Caiu na armadilha: preferiu sofrer a perdoar.

A festa






Cochichos, risinhos, olhares! Assim que chegou, provocou  todos.
O sol escaldante da tarde de sábado, não a intimidou. O cardápio também não.
Afinal, estava muito quente para uma feijoada. Serviu-se de uma caipirinha, sentou-se perto do grupo de pagode, ficou à vontade. Alguns, menos educados, colocaram óculos escuros. Ela percebeu, mas não ligou. Junto com a caipirinha, comia uns torresminhos que o aniversariante lhe trouxera.

O mais novo amigo do aniversariante estava deslocado até então. Novo na cidade, aceitara o simpático convite na expectativa de conhecer pessoas. Viera transferido há uma semana. Tudo era absolutamente novo! Tímido, tentava sorrir e cumprimentar todos.

No íntimo, ela estava constrangida, mas não daria o braço a torcer. Arrependera-se de ter colocado o vestido, os sapatos, os acessórios. Exagerara. O amigo a convida para dançar. Ela adora pagode! Dá um show! As más línguas fingem que não veem.

Um raio de sol! Linda! Perfeita! “Que mulher é essa?” Pela primeira vez sente-se realmente animado na festa. Cria coragem e pede ao amigo que os apresente.
- Este é o Paulo. Ele veio do sul. Foi transferido para a filial daqui.
- Muito prazer! Carolina. Também trabalho na fábrica.
Como ele ainda não a tinha visto? Tudo bem que no trabalho ela não se vestisse desse jeito, mas mesmo assim...

A festa continua. Os comentários agora são outros. Já tem gente querendo aderir à moda do vestido godê amarelo-ovo, combinado com colar e brincos amarelos, sapatos e bolsa de verniz vermelho.

Ninguém sabe e ela não vai contar. Sonhara com aquele visual há meses. Achara-o ridículo. Mandara fazer a roupa. Até a costureira estranhou. Seguira sua intuição. Estava feito! Agora tinha um par para sempre!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Opostos




Ela acordou disposta! Uma fruta, iogurte desnatado, levedo de cerveja. Apanhou o cachorro de estimação e saiu para a caminhada habitual no calçadão. Seu companheiro inseparável, fielmente, ao lado.

A cabeça dele dói terrivelmente, na boca um gosto amargo. Sai da cama o mais rápido que consegue. Vomita. Torna a vomitar. Toma uma cerveja gelada para curar a ressaca. Algumas azeitonas ajudam. Com olhar piedoso, uma cadela acompanha tudo. Sempre ela! Somente ela!

O sol apenas começa a esquentar, a brisa da manhã torna a caminhada revigorante. Ao longe o mar. Perfeito: poucas pessoas, beleza ímpar. O cão também se delicia. Cheira tudo pelo caminho. Agita-se alegremente.

O sol lhe incomoda. Coloca os óculos escuros. Resolve sair para passear com sua fiel companheira. Só ela para tirá-lo de casa àquela hora. Sente-se péssimo. Exagerou. “Dane-se!” Estava aproveitando a vida. Um movimento mais brusco faz sua cabeça latejar. Admite, então: exagerou na dose! Precisa mudar, levar uma vida mais saudável. Sentado em um dos bancos do calçadão observa sua amiga brincando.

Um grito de mulher corta a, ainda silenciosa, manhã. Um belo cão corre pelo calçadão em sua direção, ou melhor, em direção à Sofia. A mulher repete o grito:
- Michael!
O cão para bruscamente. O homem pensa “Por que Michael?” Sofia esconde-se entre as pernas do dono. Michael é contido pela mulher.
- Assustou-se?
- Tive medo de que ele fosse para a avenida.
- Por que Michael?
- De Michael Jackson.
Risos.
- E ela como se chama?
- Sofia.
- Bonito!
- É.
- Acho que seu cão se encantou pela Sofia.
- Parece que sim.
- Quer tomar uma água de coco?
- Quero. Obrigada!

A manhã especialmente feita para eles, aos poucos, enche-se de outros personagens nos carros, no calçadão, na praia. A vida segue sem nenhum alarde. Os caminhos, vários. O deles, agora, um.

domingo, 21 de novembro de 2010

A écharpe




- Mais essa agora!
A chuva despencou sobre a cidade e surpreendeu a todos.
- De onde vem essa chuva? Agorinha mesmo o céu estava azulzinho!
Procurou abrigo sob a marquise onde dezenas de pessoas já se aglomeravam. Subitamente a chuva parou. Ninguém entendeu nada. Alguém começou a falar sobre o aquecimento global. Apressou-se em sair dali. Deu o primeiro passo e foi bruscamente detida.
- Cuidado! Vai arrancar o botão do paletó!
Não sabia como, mas sua écharpe havia se enroscado perigosamente num blazer ao lado. Ficou apreensiva temendo por seu lindo acessório importado. Delicadamente desfez o nó e saiu em direção à rua.

O homem atravessou a rua com os passos mais largos que podia dar em meio aquela multidão apressada. A porta giratória o irritou. No elevador, o ascensorista lhe cumprimenta. Responde com um grunhido. Gentilmente, o rapaz lhe informa que o botão está quase caindo.
- Maldição!
A secretária segura no ar o paletó e ouve a ordem para que dê um jeito na situação. O homem bate a porta.

A mulher está num elegantíssimo banheiro feminino. Diante do espelho respira fundo. Tenta em vão se acalmar. Ajeita-se.  Põe a ansiedade sob controle e sai. Cabeça erguida, salto alto, elegante! Olha enfrentando os próprios medos, não percebe a porta que se abre, o homem que sai, e esbarra nele. Pede desculpas. Não ouve resposta, mas não dá importância. Precisa se concentrar. Segue pelo infinito corredor.

A secretária traz o paletó. Ele o veste. Sua irritação é visível.
A sala está cheia. Todos esperam pela apresentação do novo diretor financeiro. Ninguém imagina quem é. O medo provoca os boatos mais estapafúrdios. O certo é que todos estão nervosos. Haverá cortes drásticos. O homem imagina que depois de um dia como aquele, tudo pode acontecer. Enquanto alguns suavizam a expectativa, ele a detesta!

Ela entra na sala. Cabeça erguida, salto alto, uma bela écharpe com franjas. Elegante! É apresentada como a nova diretora financeira. Segura de si, começa seu discurso de apresentação falando sobre seus tropeços do dia e simpaticamente diz acreditar ser sinal de boa sorte.
Um largo sorriso acompanha a sua apresentação. Gestos contidos, estudados vão despertando em todos confiança. A tensão diminui.
Um pequeno coquetel é servido. Todos cumprimentam a nova diretora. O homem fica por último. Ela , sem dúvida, fora o motivo de parte dos seus aborrecimentos do dia. E agora ele sabe: do mês e da semana também. Aproxima-se, estende a mão. Ela para por segundos. Está visivelmente constrangida quando segura a mão dele. Sorri.
- Reconheci seu botão. Desculpe-me...
Ele a interrompe.
- Não foi nada! Acontece.
- Vamos trabalhar juntos, né? Soube que você é o homem da criação.
Ele se sente um idiota diante de tanta simpatia.
-Vamos sim.
Sorri tentando quebrar a péssima impressão que só ele sabe que deixou.
-Acho que vamos nos dar muito bem.
- Espero que sim.
Brindam juntos a um novo começo sem atropelos.
De longe, sem ser notado o Destino sorri. Havia conseguido juntar os dois.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A traição



- Traidor! Isso é o que ele é!
- Calma.
-Calma?! Como? Por quê? Nós sempre estivemos juntos. E a nossa viagem? E o nosso pacto? Ele quebrou! Ele me traiu!
Ninguém conseguia acalmá-la. Estava desesperada, inconformada. Na verdade, ela e o marido eram o que se podia chamar de casal perfeito. Invejados por todos. Queridos por todos. Estavam casados há 25 anos. Desde então, mantinham um ritual de voltarem à cidade da lua de mel, ficarem no mesmo hotel e renovarem os votos de fidelidade eterna.
É claro que muita coisa aconteceu durante esses anos. Tiveram filhos. Mudaram várias vezes de endereço por circunstâncias diversas. Ela já foi morena, ruiva, castanha, loira em vários tons. Ele engordou e emagreceu uma dezena de vezes. Brigaram sim. Quando compraram o primeiro carro. Ela queria outra cor. A escolha dos móveis da casa também foi responsável por brigas entre eles. E os filhos? Nossa! Como brigaram por causa dos filhos. Mas na hora da decisão sempre decidiam estar juntos. Amavam-se e ponto final. Ninguém esperaria vê-los separados.
O constrangimento era geral. Os amigos, os filhos... O que dizer? Ela não os ouvia.
- Traidor! Miserável! O que eu vou fazer agora?
- Tenha paciência... isso tudo vai passar.
- Não. Não vai. Eu o avisei. Pedi a ele que se cuidasse...
- Homem é assim mesmo. Não pensa muito nas consequências.
- Ele não pensou em mim.O que eu vou fazer agora?
Não havia resposta. A indignação dela entristecia, cortava o coração de todos.
Impassível diante da cena, o marido vestido num terno preto, jazia no centro da sala, vítima de um infarto fulminante.
Quebrara o pacto. Deixara-a no meio do caminho.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A amizade



Primeiro dia de aula. Sente-se desconfortável. Não conhece ninguém. Repara nas meninas da turma, vê se tem alguma gatinha pra azarar. Procura pelo fundo da sala. Percebe que todos se conhecem. Definitivamente ele é o estranho. Na frente está uma menina de sorriso fácil que logo puxa conversa. Muito simpática. Apresentam-se. Por causa dela outras se aproximam. Aos poucos vai conhecendo toda a turma.

Boa aluna, presta atenção em tudo.  Adora o movimento da turma, da escola, mas mantém certo distanciamento de quem não quer ser parte de tudo que acontece. Amam música!
Ele traduz algumas pra ela. Cantam as que mais gostam. Gosto sempre igual.

O menino logo se apaixona por alguém da escola. A menina da carteira da frente torna-se sua confidente. Falam o tempo todo. Estão juntos todo o tempo. Ela sabe tudo sobre ele. Ele sabe quase tudo sobre ela. Os dois se divertem tanto que começam a ser alvo de brincadeiras. A primeira a comentar é uma das professoras que os apelida de Super homem e Mulher maravilha. Ficam constrangidos. Ela teme que ele desista de ser seu amigo. Ele teme que alguém ache que ele está apaixonado por ela.

Ele leva um fora. O ombro da amiga é o melhor lugar do mundo. Até se esquece de que está sofrendo quando estão juntos.

Longe, o assunto preferido dela é ele. A melhor amiga já percebeu e diz que ela está apaixonada. Desmente. São só amigos, mas sozinha, em seu quarto, caminha com ele de mãos dadas e o ouve dizer que a ama. Atravessa todo o pátio do colégio como a namorada. Suspira... “ele nunca demonstrou nada”. É só amizade.

Longe, ele se arrisca a pensar nela de um jeito diferente: no sorriso límpido, na pele negra, no belo corpo, na cumplicidade... “Não! A zoação vai ser enorme!” E ela só é amiga dele. Nunca percebeu nada de diferente no comportamento dela.

Na escola, o disfarce faz parte do show. Nada nem ninguém podem abalar a amizade dos dois. Nem mesmo eles.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O perfume



Olha ao redor. Verifica se não esqueceu nada. Sai. No coração um misto de tristeza e alívio. Do táxi, vê pela última vez o prédio, a rua, as pessoas com quem se encontra todos os dias.
Aos poucos, tudo vai ficando pra trás. O sofrimento, a decepção... o amor!

Ele quer chegar em casa o mais rapidamente possível. Está animado. Inscreveu-se em um grupo de apoio, o chefe lhe deu uma nova chance. Tudo vai mudar! Tudo vai melhorar!
Sobe as escadas pulando os degraus. Quase quebra a chave de tão ansioso. Ela não está.
“Deve ter ido à casa da irmã”. Pensa em ligar. Controla-se. Joga fora todas as garrafas de bebida, o baralho da sorte e a agenda com o telefone dos amigos de balada. Prepara um jantarzinho para dois. Luz de velas, flores, música suave. Espera. Espera. Adormece.

Do outro lado da cidade, o ônibus parte. Finalmente, ela chora. “Se ao menos ele tivesse me ouvido... procurado ajuda... abandonado os amigos...”

Ele acorda sobressaltado. Abre as gavetas, os armários. Nada! Apenas um frasco de perfume francês que ele lhe dera no primeiro ano juntos. Ela adorava aquela fragrância, ele adorava senti-la no seu corpo. Chora. Perdeu-a. Sabe que não mais a verá. “Se ao menos eu a tivesse ouvido... procurado ajuda quando me pediu... abandonado os amigos a tempo...”

A viagem apenas começa, abre a bolsa, pega um pequeno vidro. Há nele um pouco de perfume francês que pegara antes de sair. Passa-o, delicadamente, pelo colo. Arrepia-se. Tem certeza de que não haverá mais amor como aquele. Guarda o pequeno vidro com cuidado. Adormece.

Olha mais uma vez para o vazio do guarda-roupa. Percebe que está molhado. Passa a mão. É o perfume! Levou um pouco dele junto com ela! Cheira-o insistentemente. Sente-a ali. Odeia-se por perdê-la. Guarda cuidadosamente o perfume. Na sala, as velas se apagam. Somente as flores ainda têm vida.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Tormenta


 

 

O que vestir? Deveria estar sóbria, casual, elegante, sensual?
Todas as roupas sobre a cama. O coração disparado, uma emoção adolescente.
Renascia!
Decidiu-se por uma levemente sensual. Penteou caprichosamente os cabelos...
A alegria era tanta... nunca se vira tão radiante.
Um batom percorreu cuidadoso seus lábios. Estava pronta! Não! Perfume! Discreto... apenas para quem chegasse mais perto.
Fazia tanto tempo... Eram praticamente adolescentes quando se conheceram. Namoraram por pouco tempo. Desencontraram-se. A rigor não sabia por que seu coração se alegrava tanto.
Um vento forte e indiscreto teimava em trazer de volta sua juventude...seus desejos.
Estava quase na hora. O coração aos pulos.
Tinha arrumado a casa. Tudo estava em ordem. Menos ela.
Muito tempo! Muito tempo havia passado! Lembrara-se dele em algumas ocasiões, mas se convencera de que não era importante. Às vezes imaginava o que teria acontecido, como poderiam ter se distanciado tanto... mas voltava à sua rotina. Era feliz. Poucas reclamações, vida organizada, trabalho certo. Sempre quis viver assim.
Novamente o vento e o cheiro de sonho, de aventura, de desejo a entorpeciam. Faziam-na pensar na insatisfação crescente com a calmaria que criara para si.
Ainda não sabia como lidar com a novidade. Não era importante. Queria e pronto!
Agora o tempo passava lentamente.
Tinham se descoberto. Iam se ver.
Tentava não pensar em como seria ... pensava teimosamente em como seria.
O tempo devagar, o desejo cada vez mais intenso.
Será que ainda poderia despertar no outro a mesma paixão? Os anos tinham passado, as marcas estavam presentes. Medo... Homens perto da meia-idade gostam de jovenzinhas.
Estremeceu.
Não abriria a porta. Não estaria em casa. Ligaria e diria que houve um imprevisto.
Não suportaria ter envelhecido para ele. Queria ser a mais bonita, queria que ele se arrependesse de ter ido embora...
Queria ser a mais inteligente! Ele a olharia e pensaria: “Puxa! Como pude perdê-la!”
Encheu os pulmões de ar e a mente de coragem. A campainha finalmente tocou.
Sentiu-se um pouco tonta. “A cabeça em maresia” . Abriu a porta. Entraram sonhos e desejos.
O tempo para.... A vida para.... Os braços poucos. Os beijos loucos. “O que era aquilo? Que maravilhoso descontrole acontecia logo a ela, tão certinha?”
Muito tempo! Sentia agora o coração do outro respondendo ao seu. Olharam-se. Sorriram de si. Procuraram por uma explicação. Não havia.
O vento trouxera uma tempestade.
Finalmente, era o tempo de vivê-la!

Saudades



Um perfume que não sinto...
Uma voz que não ouço...
Um sorriso que não vejo...
Uma gargalhada que não ressoa...
Uma música que não toca...



Chovia.
Ela desceu as escadas enrolada no edredom de estimação.
Lá fora, um zangado vento salpicava folhas pelo chão. Foi até a cozinha, fez um chá, pegou alguns biscoitos.
Na volta para o quarto apanhou um livro. O dia não pedia outra coisa: ouviria música, leria um pouco ou muito, assistiria à tv. Talvez se conectasse e conversasse com alguém, que como ela, estivesse com medo de enfrentar o frio. Sorte que era feriado!
Mal chegou ao quarto, o telefone tocou. Atendeu. Do outro lado alguém perguntou por Margarida. Não havia nenhuma Margarida. Era engano. Desligou contente por não ter que conversar àquela hora.
Novamente o telefone: o mesmo engano. Margarida ali não existia. Percebeu uma certa tristeza na voz que falava do lado de lá.
Continuou tomando o seu chá, segurando a xícara com as duas mãos para aproveitar o calor, mas já não estava tão quente quanto ela gostava. Aconchegou-se na cama e pôs-se a ler. Há dias aproveitava todo tempo livre para gastar com um novo romance adquirido recentemente.
Estremeceu com o novo toque do telefone, entregue que estava à leitura. “Será que era para Margarida?” falou achando graça. Desta vez, a pessoa perguntou com quem falava e pediu desculpas por estar importunando. Disse que estava fora do país há algum tempo e precisava muito conversar com a Margarida. Ela explicou que não conhecia ninguém com esse nome. Silêncio... Tentou falar com o desconhecido, mas ouviu apenas um soluço. Um aperto tomou conta do seu coração. O telefone foi desligado e ela ficou ali a imaginar quem seria esta mulher, quem seria este homem? O que teria acontecido para que se perdessem?...
Resolveu ver um pouco de tv: desenho animado para não pensar mais em nada. Desligou o telefone da parede. Não queria participar do sofrimento alheio. Aquietou-se.
Sentia fome quando desceu até a cozinha procurando algo rápido e fácil de fazer. Almoçou em pé junto à pia. Havia parado de chover. Resolveu dar um jeito na casa, abrir as janelas. O celular tocou. Era sua mãe. Já tinha ligado várias vezes e ninguém atendia. “Onde ela estava?” “O que estava fazendo na rua com um tempo desses?” Lembrou-se de religar o telefone. Conversou rapidamente com a mãe.
O dia passou sem novidades. Saíra um pouco. Fora até a padaria, à banca de jornais... Bem no fundo de si percebia uma crescente insatisfação. Olhara algumas manchetes à procura de algo que mudasse sua vida. Sentira-se ridícula!
Em casa, fez um lanche, leu um pouco mais, conversou com uns amigos na internet. Por fim resolveu dormir. Novamente o velho edredon –companheiro inseparável de horas como as que vivia. O telefone! Atendeu. Puxa... poderia ser alguém para tirá-la do tédio... A mesma voz masculina: “Por favor queria pedir desculpas pelo incômodo de hoje” Ela sorriu. Achou divertido. Estava curiosa para saber que história se escondia atrás daquela voz. Respondeu que não havia problema algum e tentando puxar conversa perguntou se ele havia conseguido encontrar a Margarida. Arrependendo-se, imediatamente, do maldito trocadilho. A voz sorriu. Mas não lhe respondeu. Ela teve medo de que ele desligasse e quis saber o nome dele. “Alfredo”. “E agora o que dizer?” “Monica!” Meu nome é “Monica”. Riram. “Muito prazer” disseram ao mesmo tempo. Ela perguntou quando ele chegara ao Brasil. Ele o que ela fazia. Conversaram por alguns minutos. Os dois sem saber que preenchiam a solidão um do outro. Despediram-se por falta de assunto.
O relógio tocou às 7h, como sempre. Mas havia algo diferente no ar.
Trabalhou como louca. Riu com os amigos de trabalho. Contrariando sua rotina, resolveu almoçar num restaurante chinês. Deliciou-se com rolinhos primavera e saboreou sem culpa uma maçã caramelada! De volta ao trabalho, nem percebeu a hora passar. Não queria admitir, mas havia um desejo de chegar em casa. Quem sabe o telefone...
Não deu vazão aos seus pensamentos. No caminho de casa parou algumas vezes, tentando disfarçar a pressa. Comprou algumas coisas para o lanche, pegou o filme. Adorava-o!
Tomou um longo banho bem quente, passou o hidratante de costume, vestiu uma roupa confortável, porém sensual. Arrumou a mesa com capricho, preparou o lanche, sentou-se como se tivesse companhia e comeu devagar.
Não foi para o quarto. Ligou a TV em um canal de notícias, assistiu a alguns noticiários, prestou atenção à previsão do tempo. O telefone desmontou sua falsa calma. Era sua mãe.
Conversaram por mais tempo do que ela pretendia. Prometeu passar para conversar mais um pouco no dia seguinte. Desligou.
O filme sobre a mesa entrou no DVD. Pausa. Foi à cozinha e pegou um vinho. “O filme merece um bom vinho!” Play. A história começa e apesar de já tê-la visto algumas vezes se emociona. Novamente o telefone: uma amiga do trabalho. Fala rapidamente. Mente dizendo que tem visita. Volta ao filme. Adora aqueles diálogos!
O final é o que mais a emociona. Sem o glamour dos contos de fadas, faz pensar que pode acontecer a qualquer um. A ela, por exemplo.
Já é tarde, precisa levantar cedo e disposta. Uma reunião daquelas a espera no dia seguinte. Adormece meio decepcionada...
O despertador, o telefone, todos juntos, ao mesmo tempo. Sobressalto. “O que aconteceu?” Pensa na mãe e atende o telefone com o coração aos pulos. “Acordei você?” - diz a voz que ela reconhece ser do Alfredo. “Já estava acordada”, responde com um certo mal humor educado na voz. “Desculpe! É que estou saindo para caminhar... talvez você pudesse... quisesse. Pensei em convidá-la para caminhar comigo.” “Louco! Só pode ser louco! Nem me conhece e me liga a essa hora da manhã!” pensa. “Sinto muito, tenho que trabalhar fica para uma outra vez.” “Vou cobrar!” “Tá bom, Tchau.” Desliga o telefone com uma péssima impressão do tal do Alfredo. Arrependida de ter dado confiança de ter conversado com ele. “Deve ser um chato!”
Arrumou-se para o trabalho com cuidado. Certamente provocaria elogios. No carro, MPB da melhor qualidade! Queria estar pronta para a reunião.
A reunião, o dia, os elogios... tudo como ela planejara. Sentia-se poderosa, inteligente!
No final da rua onde morava havia uma pracinha que servia de retorno. Não precisava, mas foi até lá, contornou a praça numa velocidade um pouco acima do necessário: risco calculado,claro, mas agora, era também excelente motorista! Colocou o carro na garagem. Entrou em casa.
O relógio foi o primeiro a ser retirado. Os sapatos. “Odeio salto!” O cinto. “Que alívio!” jogou-se no sofá, ligou a tv. Ainda era cedo para assistir aos noticiários. A moça da faxina estivera na casa. Tudo cheirava a limpeza. Recolheu a pequena bagunça que fizera ao entrar. Subiu para tomar um banho. Sobre a cama suas roupas limpas e passadas. “Depois do banho, eu guardo.” Olhou em volta fiscalizando a arrumação. Um bilhete. Havia um bilhete sobre a cômoda. Pegou-o, caminhou até a bolsa, então colocou os óculos e leu. “Dona Mônica ligou um tal de seu Alfredo. Deixou este número. Pediu que a senhora ligasse”.
Um frio no estômago. “Ligar?” Ficou nervosa. Será que ele a convidaria para sair? Correu para o banheiro. Pensaria melhor no chuveiro.
Entrou no banheiro tentando manter sua rotina, mas um súbito desejo trouxe de volta lembranças sufocadas. “Mais essa agora! Há quanto tempo...” Sorriu. Não ligou o chuveiro. De volta ao quarto, apanhou um cd: Djavan. Estava escondido sob um amontoado de outros CDs. A capa, a foto...Quanto tempo... Pegou o pequeno rádio guardado no armário. “Será que ainda funciona?” Lembrou-se da banheira.
Colocou tudo sobre a cama e resolveu encher a banheira. Água bem quente! Procurou no pequeno armário de madeira alguns sais. Sentiu medo de que lhe fizessem mal. Tanto tempo sem uso. Preparou o próprio banho como um ritual quase sagrado. Decidira curtir toda aquela saudade, reviver todo aquele desejo. Tudo pronto. Quase. Pegou o roupão cheirando a guardado. Ia levá-lo quando avistou o outro. Pegou-o também. No bolso, a marca de sua desastrosa tentativa de bordar: uma torta letra A.Quase podia ouvir os risos da noite em que mostrara o bordado para ele. Quase podia sentir os abraços, os beijos, os pedidos de desculpas dele diante do ar de decepção dela.Nunca mais pensara naqueles momentos, nunca mais tivera tanta felicidade! Sufocou toda e qualquer tentativa de seu coração voltar àqueles tempos. Estranhamente hoje, queria recordá-los. Estava cansada. Cansada de não sentir.
Apanhou o roupão com a letra A. “Quem sabe ainda não haveria nele o mesmo perfume?” Ligou o rádio, colocou o cd... mergulhou na banheira cheia de água quente e de saudades.
Chorou. Copiosamente, chorou. Era a primeira vez que chorava. Não tinha ousado fazê-lo nem no momento da separação. Mergulhou novamente. Sentiu por não ter apanhado um vinho para comemorar aquele momento.
No Cd, sua música favorita.Na banheira uma tempestade!
Fechou os olhos e se deixou levar. Queria expurgar tudo aquilo. Queria ser gente de novo.
Riu. Tudo isso, porque um desconhecido pediu que ela ligasse. “O que havia naquela voz que a tinha feito desmoronar depois de tanto tempo?...”
A música termina, a água esfria. Envolve-se no roupão. O perfume não está mais lá, porém todo o seu corpo o sente.
Volta a música no cd e dança com suas lembranças. “A gostava tanto dela...” repetia-lhe os versos como se os tivesse feito especialmente para ela. “Que felicidade era aquela?” “Será que realmente tudo aquilo existiu?”
O telefone tocou. Estremeceu. Era sua mãe. Não sabia se sentia alívio ou ficava decepcionada. A mãe perguntou o que acontecera, por que ela estava diferente? Desconversou. Não convenceu. Falaram por quase uma hora. Despediram-se. “Cuide-se, filha!” “Tá bom.”
Deitou-se. “Tudo aquilo acontecera realmente com ela?” Encolheu-se e dormiu. Não sonhou. Dormiu feito criança. Leve, despreocupada, feliz.
Acordou com o sol rasgando as cortinas. Tinha perdido a hora. Não se lembrara de colocar o relógio para despertar. Na verdade nunca precisara dele, sempre acordara sozinha.
Apesar do atraso, arrumou-se com cuidado. Prendeu os cabelos, colocou um perfume, maquiou-se, colocou um vestido! Telefonou avisando que se atrasaria. Pegou um cd de uma banda dos anos 80. No caminho para o trabalho, parou para tomar um capuccino. Combinava com o frio, com o vestido de lã importado, com o casaco,com as botas. Combinava com ela! Percebeu que havia passado tempo demais magoada. Queria mudar. Tinha uma bela história! Tinha por que sentir saudades! Tinha por que se sentir feliz! Se não tinha dado certo, paciência. Não guardaria mais mágoas.
No trabalho, todo mundo notou algo diferente nela. Não contou nada a ninguém. Sorriu para todos que perguntaram o que havia acontecido.
O dia passou tranqüilo. Na volta para casa comprou flores: margaridas!
Ligou. Do outro lado a voz do Alfredo respondeu. Disse quem era. Ele perguntou por que ela não ligara antes. Ela não respondeu. Ele a convidou para jantar e sugeriu um restaurante chinês. “Você também gosta de comida chinesa?” perguntou sem pensar. “Muito!” Ela achou melhor encontrá-lo no restaurante. “Às 9?” “Ok!” Estava feito. Não sabia bem o motivo, mas sabia exatamente o que vestir. Colocou a roupa sobre a cama, pôs a banheira para encher, pegou o cd.
“Margarida...Mônica, Alfredo...A. Coincidência...” pensou. O manobrista levou o carro. O restaurante ficava numa antiga casa de dois andares. A decoração relaxante tinha elementos modernos e tradicionais chineses. Entrou. Havia poucas pessoas àquela hora. Alguns casais e uma mesa com duas mulheres conversando animadamente. Sentiu medo: “se ele não viesse?” Mal terminou o pensamento, o maitre aproximou-se, chamando-a pelo nome. Sorriu - um pouco assustada- frequentara aquele restaurante por muito tempo, mas era impossível que o maitre se lembrasse dela. Ela mesma não sabia se já o tinha visto antes. Educadamente, ele a conduziu ao segundo andar. Havia apenas um casal sentado no fundo do salão. Onde estaria ele? Novamente o maitre. Desta vez indicou-lhe uma mesa próxima a uma parede de vidro. Dela via as luzes da cidade, o movimento dos carros e uma encosta repleta de bromélias. O cenário era lindo! Não havia lua. O céu estava salpicado de estrelas. Ela adorava o céu de outono. Tão límpido!
Lembrou-se de outras vezes em que estivera naquele mesmo lugar. Um nó apertou sua garganta. Talvez não devesse ter aceitado jantar ali depois de tanto tempo. Olhou em volta e reparou que somente sua mesa tinha flores: margaridas! Sorriu. “Ele é espirituoso!” Um garçom se aproxima e pergunta se ela quer algo. Responde que não. Olha para o relógio e sente-se ridícula, por quanto tempo ficaria esperando? Pensou em ir embora, contudo antes que tomasse qualquer atitude, notou alguém de pé ao seu lado.
Emudeceu. Tudo o que pensara durante o dia, todas as promessas que fizera para si mesma, caíram por terra. Tentou se controlar, dizer alguma coisa. Não conseguiu encontrar ar suficiente para qualquer ação.
Era uma tonta, idiota e ainda por cima não conseguia falar!
Como não percebera? Como não reconhecera? Uma voz carinhosamente interrompe sua tempestade interna. “Calma! Eu explico tudo.” Como se soubesse o que ela sentia naquele momento. Rapidamente tentou fazer um ar de desinteresse, de naturalidade. “Era ele! Seus olhos não mentiam. Era ele!”
Fazia cinco anos. Lembra-se das brigas dos últimos momentos juntos. Da dor que sentiu, quando ele foi embora.
Do sofrimento dos primeiros meses, dos primeiros anos... Tinha conseguido sobreviver. Tinha crescido no trabalho. Era bem-sucedida, mas nunca se curara daquele adeus. Agora que resolve recomeçar, ele ressurge. “Isto não era certo!” Novamente foi interrompida. “Calma!” “Por que ele pedia tanta calma? Como ele sabia o que estava acontecendo dentro dela?” Levantou-se. Iria embora. Tudo aquilo era demais. “Alfredo!”, “Margarida!” “E a boboca acreditando em tudo”. O toque. Ele pega em sua mão e pede que ela fique. Nunca resistira ao seu toque. “Que ódio!” Sentou-se. O mesmo perfume... Estava decepcionada. Tinha imaginado uma noite agradável. E se descobrira fazendo papel de boba. Olhava insitentemente para fora. A paisagem havia mudado. Tudo havia mudado. O toque... Ele pega suavemente em seu queixo e volta o rosto dela para si.Tão próximo assim, seu perfume a desconcerta. “Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia como fazer.” Parecia que ele ia chorar. O coração dela se apertou.
“Liguei pra você...quando ouvi a sua voz, não soube o que dizer e inventei aquela história maluca. Me senti ridículo inventando o nome Margarida! Liguei de novo. Queria ouvir novamente a sua voz. Não me contive. Saber que você estava tão perto... Depois achei que seria uma maneira de me aproximar. Dei o nome de Alfredo. Pensei que você pudesse ter alguém.Você sequer reconheceu a minha voz... Fiquei confuso. Telefonei pela manhã pra ter certeza de que nenhum homem atenderia. Adorei ouvir você mal-humorada!” Ela o interrompe.“Por que ninguém me disse que tinha voltado? Estavam todos me fazendo de boba?” “Não!” Ainda não estive com ninguém! A primeira vez que liguei, estava no aeroporto. Agora estou num hotel. Você é a primeira pessoa a saber que estou aqui. Não queria falar com ninguém antes.” Ela sabia que ele era sincero.Nunca mentia. Isto sempre foi o que mais admirou nele. “Por que você voltou? Acabou o mestrado? Não quis continuar os estudos? Sua namorada foi embora?” A gargalhada... Como tinha sentido, por não ouvir mais aquele jeito escancarado de rir. “Terminei o mestrado e tenho indicação para o doutorado. Consegui outra bolsa. E não tive namoradas. Nada que durasse mais de uma noite.” Silêncio.
O garçom trouxe o cardápio, aproveitando que havia calma. Ela não queria nada. Perdera a fome. Ele insiste: “Coma ao menos um rolinho primavera. Você sempre gostou tanto...” Lembrou-se do dia em que subitamente resolvera almoçar num restaurante chinês próximo ao trabalho. “Será que já era um sinal?” Assustou-se ao se dar conta de que as últimas mudanças em sua vida tinham acontecido depois do telefonema. “Você está linda! Sempre ficou linda de azul! Esse tal de Alfredo está perdido, coitado.!” Riram. Ele tocou seus cabelos... Ela se conteve. Sob a mesa cruzara as pernas. Sempre fazia isso quando não conseguia dominar a situação.
Olharam-se fixamente.Tocaram-se profundamente! Ainda há muito para ser dito, mas seus corações já descobriram o mais importante.
Tomaram vinho. Celebraram!
Ela ainda não sabe, mas se pedir, ele não volta para fazer o doutorado. Ele não faz idéia de que se quiser, desta vez ela deixa tudo e vai com ele.
Vinho além da conta...
No rádio do táxi, Djavan! A noite tornou a ser linda!