quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Perdida



Acordou. Abriu a janela prestando atenção aos sinais do tempo.Tomou um longo banho bem quente. Colocou uma blusa, calça jeans, um tênis, perfumou-se. Antes de sair, conferiu a bolsa. Trancou a casa.

A chave foi encontrada na lixeira. Os documentos também. Ninguém sabe o que houve.
Não levou nada da confortável vida que tinha. Não disse adeus a ninguém! Desapareceu sob a neblina. Densa, misteriosa....

domingo, 26 de dezembro de 2010

Continho



Ruiva, sardenta, magra.
_ Foguinho!
_ Espiga de milho!
_ Labareda!
Moleque, pés descalços, bermuda, banho de rio.
_ Nem parece uma menina!
_ Olha só que modos!
_  Nunca a vi de vestido!
_ Cruzes!
Briguenta, desaforada, petulante.
_ Não tem educação!
_ Veja bem como fala com os mais velhos!
_ Boca suja!
_ Essa não tem jeito.
_ Não quero você falando com ela!
_ Vai acabar sozinha!
_ Duvido que arranje marido!
Descoberta, desvendada, revelada...
_ Moranguinho...
_ Hum!?
_Você parece um moranguinho com todas essas pintinhas.
_ Pareço?
_ Sim. Seus cabelos...
_ O que tem meus cabelos?
_ Você os roubou do Sol para ofuscar meus olhos?
_ ...
_ Você é linda, sabia?
_  !!!!
_  Hei! Volte aqui!
Menina, moça, feminina, mulher.
_  Não acredito!
_  O filho do Prefeito?
_  Dizem que está completamente apaixonado por ela.
_  Por aquele bichinho chucro!!??
_  Oi.
_  Oi.
_  Você está perfumada.
_  Estou.
_  Está linda de vestido!
_  Obrigada!
_  O que você quer fazer? Vamos ao cinema? Ao parque? À lanchonete?
_  Não sei...
_ Você escolhe.
_ Vamos tomar banho de rio?
_ Vamos, meu moranguinho!

sábado, 18 de dezembro de 2010

Sinais





-Assim? De repente?
-Claro que não!Você não percebeu os sinais?
-Que sinais?
- Ora, todos!
- Não, não percebi.
- É eu sei. Devia saber que você não  perceberia mesmo. Nunca percebe nada! Vive nesse mundinho, sempre fazendo as mesmas coisas, preocupada em economizar, em manter armários arrumados, em conferir as notas dos meninos, em ver se a minha roupa está bem passada. Em fazer chazinho a cada dor de barriga dentro desta casa, que não notou as mudanças.
- Pensei que estava fazendo o que era certo...
Na varanda, nunca a paixão fora tão clara!
- Pensei que você se sentisse bem... que eu lhe fazia bem...
- Bem demais! Nunca vi tanta paz! Estou cansado.
- Eu posso mudar.
- Não, não pode. Você é assim. Impossível você mudar! É isso! chegamos ao fim! Nosso casamento é um tédio.
Acordou assustada, suando. Sentiu uma enorme sensação de alívio ao perceber que sonhara. Olhou para o lado, viu o marido dormindo serenamente. O medo se instalou em seu coração. “E se tudo aquilo fosse um aviso? Um sinal?” Estremeceu só de pensar. Levantou-se. Desde quando era mulher de premonições? De crendices? Teve um dia cheio, por isso o pesadelo. Aquele doce que a sogra mandou também deve ter feito mal. “Nem estava bom.”
 Tornou a olhar para o marido, desta vez, desconfiada., inquieta.
 Tomou um banho, vestiu a lingerie nova, pôs o vestido mais bonito, meias finas, salto alto. Saiu do quarto batendo levemente a porta.
O marido foi encontrá-la sentada na varanda, pernas cruzadas, insinuante... Surpreendeu-se.  Não entendeu nada! Fechou a porta com cuidado para não acordar as crianças.
Sobre a pequena mesa, uma garrafa de vinho, duas taças. Achou melhor manter o silêncio. Serviu o vinho e dançaram juntos uma música que só eles ouviam.
A desconfiança agora habitava os pensamentos dele!
Um primeiro beijo e as taças foram esquecidas. Sorriram, cúmplices da mesma aventura, partes do mesmo desejo. Um segundo beijo e as mãos se entrelaçaram ávidas. Um terceiro e corpo e alma se tornaram um
No céu, as nuvens tornavam a madrugada mais escura.
- Você é muito previsível! Eu chego em casa e sei que você vai estar esperando, de banho tomado, perfumada, com o jantar pronto e os meninos já tendo feito a lição de casa. Nada muda!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Mistério



Duas luas!
Não se preocupou, devia estar sonhando.
Tornou a olhar meio cismado. As danadas continuavam lá reluzindo!
Esfregou os olhos, sacudiu a cabeça para ver se acordava, beliscou-se...
Nada! Havia mesmo duas luas no céu.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O tule preto



Ela se trancou no quarto, triste que estava. Fechou atrás de si a porta.
Aos poucos criou para si um mundo à parte. Mas o sol teimava em entrar pelas frestas da janela todas as manhãs.

Fechou as janelas. Teceu com esmero um vestido longo e preto, de modo que seu corpo não mais se mostrasse.

Lá fora, o tempo encarregava-se de transformar a vida. O vento sempre trazia mudanças. Dentro, tons sobre tons cuidadosamente escolhidos: todos escuros.  Rosas de organza grená passaram a enfeitar o jarro. Cortinas marrons cobriram o que restava de luz nas janelas. Em cada nova peça dedicava-se por completo.

No início, o tempo bateu na porta trazendo os ventos de outono convidando-a a olhar para as belas folhas douradas sobre o chão. Nada! Voltou trazendo delicados raios de sol para aquecer os dias frios. Em vão! Paciente, trouxe-lhe flores, folhas, frutos, exuberância! Não adiantou. Em sua última tentativa, chegou com o calor dos afagos, com temporais de alegria, com trovões e raios anunciando festa. Então ela quis sair. Mas quando tirou dos olhos o tule preto, nada enxergou. Mesmo assim tentou. Seus pés, no entanto, não conheciam o caminho para a porta e esta, tanto tempo fechada, tinha virado parede...

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O choro



Ela permitiu pela primeira vez que o vento desalinhasse seus cabelos e gostou!
Animada, deixou a fria água do mar tocar seus pés. Adorou aquela nova e perturbadora sensação. Também não se importou que o sol lhe tocasse a pele bronzeando-a...

Arrumou-se, voltou ao cemitério. Chorou profundamente diante do caixão.
Estava livre, então!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A resposta



- A vida pode ser melhor que o sonho?

A pergunta soou estranha. Estavam na cozinha envolvidas com os preparativos de um almoço em família. Uma picando temperos, a outra no fogão fazendo uma farofa maravilhosa.

Os aromas na cozinha despertavam sensações perdidas na lembrança: festas de aniversário, crianças correndo, festas de natal com todo mundo reunido. Ano novo! Quando ela terminava as rabanadas pouco antes da meia-noite, apavorada com medo de passar o ano na cozinha.

Na panela, tempero verde, cebola, alho, manteiga, cenoura e por fim a farinha. No forno o cheiro do assado. Do espesso molho, que a todo o momento é generosamente espalhado sobre a carne.

As crianças correm pelo quintal. De vez em quando uma entra e rouba alguma coisa na cozinha. Molecagem pura! Na sala, o marido e o genro assistem à tv e conversam animadamente. Serve-lhes uns petiscos para acompanhar a cervejinha.

A ampla sala, sempre bem arrumada, tem um gostoso desalinho do tempo dos filhos pequenos. O barulho do portão anuncia a chegada do filho, dos outros netos e da nora. Família completa! O filho logo se reúne na sala. Mais cerveja! A nora vem trazendo os ingredientes para a sobremesa. A única coisa que faz na cozinha. Estão animadas.

Gemas, açúcar, coco ralado, manteiga. No fogo uma calda fervente em ponto de fio. As forminhas espalhadas sobre a mesa são untadas e polvilhadas com açúcar. Entram no forno em banho-maria.

Olha para a filha arrumando os pratos com esmero. Fazendo uma delicada flor com a beterraba que vai sobre a maionese, enfeitando o assado com farofa e coloridas tiras de pimentão, salpicando cheiro-verde sobre o arroz. Até a nora faz seus quindins com visível prazer.

A campainha toca. Estranhamente, os homens não a atendem. Chamam por ela. No portão um rapaz está escondido atrás de um belíssimo vaso de orquídea. Adora orquídeas! Emociona-se. Presente do marido. Todos a observam da varanda.

Reúnem-se em torno da mesa cuidadosamente arrumada. Falam alto, disputam a comida, riem, deixam cair migalhas sobre a mesa e no chão. Mais uma vez, ela tudo observa.

Depois do almoço, as crianças tiram a mesa e arrumam a sala. Os maridos lavam a louça.

Juntas, na varanda, as mulheres são cúmplices de um mudo acordo. Cada uma, ao seu jeito, mantém unida a família. Entreolham-se ao ouvir o barulho que vem da casa. Sorriem.

-A vida pode sim ser melhor! Cada vez melhor que o sonho!
Esticam-se confortavelmente nas cadeiras de vime, todas com os pés sobre a mesa.
É a hora delas tomarem cervejinhas e fazerem fofoca.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Encanto


O cheiro que vinha da cozinha era especial. Só ela fazia aquele prato cheirar tão bem.

O bate papo na sala de visitas mudava. Girava em torno dela, da sua habilidade em encantar a todos, de receber todos com carinho e principalmente de cozinhar tão maravilhosamente.

Era possível ouvir os ruídos denunciando a fome de cada um, mas ninguém se atrevia a ir até a cozinha. Era território proibido. O jeito era esperar.

Secretamente, ela se deliciava: mesmo que não estivesse por perto, era o centro das atenções.